Hélio schwartsman - link original
No que pode ser a mais importante notícia científica das últimas décadas, pesquisadores do Laboratório Nacional Gran Sasso, na Itália, anunciaram ter flagrado partículas subatômicas com massa viajando em velocidades superiores à da luz.
No experimento Opera, cientistas lançaram neutrinos (partículas elementares cuja massa é muito pequena, mas maior do que zero) do Cern (Organização Europeia de Pesquisa Nuclear), que fica na fronteira entre a Suíça e a França, rumo ao laboratório italiano, percorrendo uma distância de 730 km.
De acordo com a equipe do físico Antonio Ereditato, as partículas concluíram sua jornada 60 nanossegundos (bilionésimos de segundo) antes do que deveriam caso a velocidade da luz tivesse sido respeitada. "Ficamos chocados", declarou Ereditato à revista "Nature".
Não foram só eles. Cientistas de todo o mundo receberam a notícia com descrédito. Pelo menos por ora, preferem atribuir os resultados a algum erro no experimento. Têm bons motivos para isso. Pelo que pude constatar em artigos e blogs da comunidade de físicos, a maioria, aqui incluídos os próprios autores do trabalho, acha mais prudente esperar que esses resultados sejam reproduzidos por outros grupos antes de considerá-los válidos. Dois laboratórios, o Fermilab nos EUA e um outro no Japão, têm capacidade de reproduzir alguma versão do experimento. Isso, entretanto, exigirá tempo. Fala-se em algo como um ano.
Se os resultados da equipe italiana são corretos, boa parte da física produzida no século 20 precisa ser revista. Uma vítima potencial é a teoria da relatividade especial do físico alemão Albert Einstein (1879-1955) --a do famoso E=mc2--, que postula que partículas com massa não podem ser aceleradas para viajar mais rápido do que a luz (os fótons, as partículas de que a luz é feita, ao contrário dos neutrinos, não têm massa). As implicações não têm nada de trivial. Se a velocidade da luz pode ser violada por um neutrino, a forma como o Universo processa informações fica bagunçada. Torna-se em princípio possível que efeitos precedam suas causas, o que literalmente vira o Universo de pernas para o ar. Para os que gostam de enfatizar o lado prático, abrir uma agência de viagens no tempo começa a parecer uma boa oportunidade de negócios.
Em termos mais convenientemente acadêmicos, o próprio impacto da descoberta, se confirmada, vale frisar, ainda não está claro. Victor Stenger, por exemplo, sustenta que os axiomas básicos da relatividade especial e suas equações não saem arranhados. Bastaria, segundo o autor de "The Fallacy of Fine-Tuning", retirar da teoria o princípio da causalidade (a noção, secundária na teoria, de que causas vêm antes de efeitos) que tudo fica bem.
Já Brian Greene, da Universidade Columbia, vê implicações mais profundas. Para ele, a confirmação do neutrino superluminal nos forçaria a rever nossas ideias básicas sobre como o Universo funciona. Stephen Perke, chefe da física teórica do Fermilab, antecipa uma possível solução para o problema: os neutrinos tomaram um atalho por outras dimensões espaciais, o que lhes permitiu viajar mais rápido que a luz.
É aqui que as coisas começam a ficar interessantes. Deixo para os físicos a discussão sobre o que pode estar ocorrendo, se é que há de fato algo ocorrendo, e me concentro num tópico de filosofia da ciência, que é, como veremos mais adiante, o debate entre realistas e instrumentalistas.
Quando Perke recorre a dimensões extras para explicar a possível anomalia, ele está oferecendo uma solução matemática. Isso é não apenas esperado como também necessário. A imbricação entre física e matemática é total, entre outras razões porque nós só conhecemos aquilo que podemos medir, para roubar o bordão de Marcelo Gleiser em ªCriação Imperfeitaº, sobre o qual já escrevi uma resenha.
Ocorre que não são poucos os que acusam a física contemporânea, em especial a física de partículas e os teóricos das supercordas, de estar criando um universo de abstrações matemáticas que não têm como ser testadas no atual estado da nossa tecnologia (o que não seria um pecado muito grave) e nem em princípio (o que garante a danação eterna para um físico). De acordo com esses críticos, esses ramos da física estariam se aproximando perigosamente da metafísica e das religiões.
Que algumas teorias se tenham tornado altamente abstratas e radicalmente inverossímeis é indiscutível. No excelente "The Hidden Reality: Parallel Universes and the Deep Laws of the Cosmos", Brian Greene descreve (e de uma maneira quase compreensível) nada menos do que nove versões de multiverso, isto é, da ideia, para muitos extravagante, de que existem realidades paralelas. De acordo com alguns desses modelos, há mundos em que diferentes versões de você estão neste exato momento lendo esta mesma coluna; em outros, o seu eu paralelo está lendo a coluna, mas ela não trata de física e sim de filologia gótica. O número de realidades paralelas pode ser infinito, ou pelo menos absurdamente grande (maior do que o total de átomos no ªnosso Universoº), abarcando todas as histórias possíveis, isto é, todas as possibilidades concebíveis que não violem as leis da física.
Em outros modelos, universos paralelos brotariam como bolhas de sabão, resultado de flutuações quânticas submetidas a uma expansão ultrarrápida conhecida como inflação cósmica. Combinações desses diferentes nove tipos não estão descartadas. Algumas das propostas são tão complicadas que até as religiões parecem mais lógicas. Mas, ao contrário das fés, esses modelos estão calcados em sólida matemática e nenhum deles sugere que faça sentido rezar para realidades paralelas. Se há uma característica notável nos universos alternativos é que eles interagem muito fracamente com o nosso, quando e se de fato o fazem.
A questão que fica é: dá para acreditar nessas coisas? É aqui que entra a polêmica entre realistas e instrumentalistas. Para os primeiros, que incluem autores consagrados como Greene e o israelense David Deutsch, a resposta é sim. Universos paralelos existem e devemos acreditar neles porque é aonde as equações nos levam. Mais do que isso, já contamos com algumas evidências empíricas, como o fenômeno da interferência quântica. Com o tempo, afirmam, mais provas deverão acumular-se e provavelmente um dia teremos explicações completas que tornem essas realidades menos contraintuitivas.
Em favor de seu caso, lembram que não havia ideia mais estranha do que a de que a Terra se move em altíssima velocidade em torno de seu próprio eixo e também do Sol. Afinal, o que vemos é o Sol cruzando os céus e não sentimos estar em movimento. Foi a matemática de Copérnico e Galileu que nos levou ao paradigma heliocêntrico, que hoje não recebe contestação.
Para os realistas, ainda que aos trancos e barrancos e sujeitos a erros, o que a matemática revela é real e os modelos científicos descrevem o mundo, o tecido de que é feito o Cosmo. A eles opõem-se os instrumentalistas, para os quais a realidade é, no fundo, incognoscível. Tudo o que a ciência pode nos oferecer são previsões corretas e é a elas que devemos nos ater. Uma teoria é tão boa quanto as previsões corretas que ela consegue fazer. Vale lembrar que a própria matemática, na qual a física se funda, é bem menos consistente do que gostamos de imaginar, como o demonstrou Kurt Gödel com seus teoremas da incompletude. A decorrência é que a própria lógica repousa sobre uma série de pressupostos filosóficos que não temos como justificar.
É um debate apaixonante no qual, pelo menos por ora, me abstenho de tomar posição. E ele ganha especial relevância numa situação em que uma ideia fundamental da física moderna pode ter sido contradita por um experimento. Se o neutrino apressadinho for de fato confirmado, os próximos meses e anos deverão ser epistemologicamente emocionantes.
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